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«Portugal tem um potencial humano excepcional, mas a ciência está enquistada»

25 Mai 2017 - 12h39 - 7.696 caracteres

Nascida em Lourenço Marques (Moçambique), Joselia Neves é hoje coordenadora científica do Mestrado em Tradução Audiovisual na Hamad bin Khalifa University, no Qatar. Esta entrevista foi realizada no âmbito do GPS - Global Portuguese Scientists, um site onde estão registados os cientistas portugueses que desenvolvem investigação por todo o mundo.

 

 

Pode descrever de forma sucinta o que faz profissionalmente?

 

Sou coordenadora científica do Mestrado em Tradução Audiovisual na Hamad bin Khalifa University, no Catar – o primeiro mestrado na área no Médio Oriente – e investigo Tradução Audiovisual e Comunicação Inclusiva. De forma mais concreta, trabalho em legendagem para surdos, áudio descrição e comunicação áudio-táctil para cegos. Como sigo os princípios da investigação-acção, faço o que estudo e estudo o que faço, sempre em colaboração com os agentes que oferecem os serviços e os utilizadores finais. Basicamente, trabalho com televisões, produtoras, companhias de teatro, museus e organismos públicos e privados promotores de serviços diferenciados, bem como com instituições ligadas a pessoas com deficiência, para, em conjunto, desenvolvermos soluções efectivamente úteis a quem delas necessita.

 

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

 

A comunicação inclusiva é uma área inter e transdisciplinar com um enorme potencial científico e social. Por um lado, estudamos a ciência e arte de comunicar (através de diversos sistemas verbais e não-verbais); por outro, temos a possibilidade de “mudar o mundo”. O trabalho que desenvolvo está intimamente ligado à vida quotidiana e às formas mais básicas de comunicação. Um dia os projectos implicam trabalhar com o cinema ou a televisão para desenvolver formas de acesso às novas plataformas de distribuição; para no dia a seguir estar a tornar um espectáculo de dança “visível” a pessoas cegas; para depois trabalhar num museu ou atracção turística através do desenvolvimento de guias multissensoriais; e logo a seguir criar materiais para serem utilizados numa sala de aula.

Uma vez que toda a minha investigação é desenvolvida com a comunidade envolvente, tem repercussões humanas e sociais que vão muito para além da esfera puramente académica e científica. A título de exemplo, neste momento estou a desenvolver dois projectos distintos em termos de espaço e contexto de aplicação, mas interligados no tópico de investigação. Em conjunto com a Qatar Museums, estudam-se materiais áudio-tactéis para uma exposição de Giacometti; e num contexto totalmente diferente avalia-se a utilização de técnicas semelhantes na apresentação de informação de segurança a bordo de voos da Qatar Airways. Tal revela como o conhecimento se vai construindo com base em estudos de caso concretos, cujos resultados revertem de imediato para o contexto em que o fenómeno é estudado.

O que mais me fascina no trabalho de I&D que desenvolvo é o facto de cada descoberta trazer em si múltiplas oportunidades. Cada projeto é especial e único e os resultados são sempre reais e tangíveis. Vivencio continuamente o efeito borboleta... vejo-me mais como uma exploradora do que uma cientista... e todos os dias me maravilho com os mais pequenos avanços.

 

Por que motivos decidiu emigrar e o que encontrou de inesperado no estrangeiro?

 

Sempre tive um pé dentro e outro fora de Portugal, uma vez que muitos dos meus estudos e projectos científicos se deram no estrangeiro. Sair de forma mais definitiva (embora sempre temporária) foi o percurso natural para quem sempre tomou o mundo como espaço de acção. Trabalhar e investigar num país como o Catar tem atrações várias, que obviamente passam pelas óptimas condições de trabalho, mas que, acima de tudo, se prendem com a energia que advém de um país em construção. O investimento nas tecnologias, na ciência e na cultura permitem que, em áreas pouco convencionais como a minha, se tenha condições ideais para a experimentação e a inovação.

 

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

 

Somos um país com um potencial humano excepcional. Temos, num entanto, um sistema científico um pouco enquistado. As áreas tradicionais dominam e os estudos interdisciplinares têm mais dificuldade em se encaixarem no sistema vigente. As ciências sociais e as humanidades vêem-se relegadas para segundo plano, em termos de apoios e reconhecimento. A investigação aplicada nestes domínios é ainda menos reconhecida por ser, muitas vezes, híbrida e não seguir os padrões pré-estabelecidos numa determinada área. O sistema encontra-se ainda muito compartimentado e hierarquizado, havendo pouco espaço para interacção e fluidez entre domínios. Existe muita investigação de ponta, desenvolvida por jovens investigadores em laboratórios, politécnicos ou mesmo de forma autónoma, que nunca chega a ser considerada como tal, pelo simples facto de existir fora da(s) caixa(s) que o sistema impõe.

 

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

 

A GPS tem vindo a surpreender-me pelo dinamismo e pela pro-atividade. Para além da sensação de comunidade alargada que nos proporciona – pelo simples facto de sabermos quem e quantos somos, ou podermos descobrir quem estuda o que nós estudamos, ou quem habita o canto do globo em que nos encontramos –, permite-nos saber o que se vai passando no panorama científico em Portugal.

A noção de corresponsabilização, expressa na frase “a rede GPS são todos os investigadores que nela se registam e a dinamizam” é também muito interessante. No entanto, essa construção colaborativa só é possível se se der sob uma liderança forte e numa estrutura coesa e clara, algo que a GPS também mostra ter. Por fim, as mensagens que vamos recebendo por e-mail, sobre temas tão variados quanto os rankings internacionais ou bolsas existentes, também contribuem para esse sentimento de partilha e pertença que aqui quero relevar.

 

Consulte o perfil de Josélia Neves no GPS – Global Portuguese Scientists.

 

GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

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